“Capitalismo coronavírus”: Banco Central americano patrocinou farra de recompra de ações





                                                                                                  Sergio da Motta e Albuquerque




A expressão “Capitalismo coronavírus”, da autoria de Amy Goodman, a jornalista e apresentadora do “Democracy Now”(9/4) serve bem a quem acredita que estamos diante não apenas de uma crise econômica causada por um vírus, mas de uma reorganização em grande escala do sistema capitalista, onde o papel do “Fed” - o Banco Central ianque – é agora, no lugar do BIS (o Banco de Internacional de Compensações, em Berna), o Banco Central mundial “de fato”. A realidade empírica parece confirmar essa afirmação

Gregory “Gregg” Mannarinno, especialista em cryptomoedas e analista de mercado, é conhecido nos Estados Unidos como o “Robin Hood de Wall Street”. Ferrenho adversário de Donald Trump, ele nunca perde de vista os interesses da economia real e dos trabalhadores em seus comentários na imprensa e nas redes sociais. Até o momento, ele tem sido o principal  adversário do surgimento de uma nova ordem mundial do sistema capitalista, onde o Banco Central americano desponta como o novo supervisor geral do sistema financeiro internacional. Esta tal nova ordem inclui o que ele chama de "implantação do nacional-socialismo nos Estados Unidos sob Donald Trump". Por escapar ao escopo desta comentário, por hora deixaremos  de lado o tema da ascensão do nacional-socialismo (ou nazismo), no país de Trump e seus eleitores.

Mannarino, um jovem com aparência de “yuppie”, tem muito bons argumentos para defender seus argumentos sobre a atual crise. Ele explicou que nos dias 6 e 7 deste mês, o ‘Fed’ passou a comprar, através dos bancos de investimentos locais, um número gigantesco de ações de várias companhias, provocando um aumento artificial brutal nas operações da Bolsa de Nova Iorque. O mercado de ações saiu da beira do precipício, num movimento sem precedentes da história do mercado financeiro, com a economia real paralisada e prestes a mergulhar numa recessão ou pior. O divórcio entre o mercado financeiro e a economia real de cimento e tijolos das lojas e fábricas agora é completo.  Talvez, irreversível.

O papel dos bancos centrais nas economias capitalistas não é apenas fornecer liquidez (dinheiro) às empresas em momentos de crise. Ele, através de suas regulações nas  Bolsas de Valores,  é o responsável por verificar a capacidade das mesmas em encontrar os preços dos principais ativos em investimentos das economias do planeta. É  função das bolsas estabelecerem o preço real de cada negócio, indústria ou empresa que tenha presença na Bolsa de Valores de cada país, através do mercado acionário. Quando estas não podem fazê-lo, em momentos de crise, produz-se um vazio na ordem do sistema financeiro. Uma espécie de “crise de liderança” na hierarquia do sistema, que se não for resolvida em tempo hábil, devastará a economia como um todo.

Quando a pandemia do coronavírus tomou conta do planeta, havia, nos Estados Unidos, uma falsa sensação de força na economia do país sem qualquer sustentação na economia real, ainda não de todo curada da crise anterior em 2008. As empresas americanas, entretanto, fragilizadas pela recompra de suas ações, não tinham dinheiro em caixa para defender suas posições quando a crise surgiu com toda força.

Não há uma explicação de causa única para esta crise, mas as recompras de ações ('buybacks'), por grande parte das corporações americanas foi uma das razões que enfraqueceram as posições das empresas quando a pandemia chegou para ficar neste ano. Muito poucas corporações agem com a Apple, que mantém grandes somas de dinheiro em caixa, pronta a enfrentar momentos difíceis. As recompras de ações, agora limitadas ou proibidas no país do Norte, provocaram um aumento dos preços das ações até 2019 através de uma matemática simples: mais ações em poder de emissores poderosos e valorizados significa menos ações de alto valor no mercado. Com a escassez, vem a sobrevalorização e os lucros, e, com eles, os aumentos nos pagamentos a grandes investidores e capitães de indústria. Esse abuso descapitalizou as empresas, que alocaram grande parte de seus capitais investindo em si mesmas ao comprar de volta suas próprias ações.

O problema ianque com a farra da recompra de ações não passou despercebido no Brasil nem nos Estados Unidos. Em 2015, o site “Infomoney” (12/6) publicou uma advertência séria sobre o risco a que os americanos, cegos pela ambição do lucro fácil, expuseram-se sem levar em conta o futuro da economia do país. Uma bomba-relógio estava em ação para disparar. Levaria quatro anos e uma pandemia planetária letal para explodir.

O título do artigo foi “O problema que o Fed criou para as Bolsas dos EUA que pode estourar em breve”, da jornalista Paula Barra. Ele expõe a participação irresponsável do Banco Central ianque na farra da recompra. O site explicou muito bem o que estava em curso no país dos ianques, bem  antes do mandato presidente Obama:

No ano passado (2014), as empresas do S&P 500, um dos principais índices acionários do mercado americano, investiram cerca de 95% de seus lucros em recompras de ações e pagamentos de dividendos, com as recompras de ações excedendo os US$ 2 trilhões desde 2009, segundo dados compilados pela S&P Dow Jones Índices.
Esse (sic) ano, as recompras bateram um novo recorde. Somente no mês de fevereiro, as companhias anunciaram recompras acionárias de US$ 104,3 bilhões, valor que equivale a 2% do valor total dos papéis negociados em bolsas locais naquele mês, segundo estatísticas compiladas por TrimTabs Investments Research e Bloomberg e divulgadas pela IR Magazine. O montante foi o maior desde que a TrimTabs começou a acompanhar os dados, em 1995, e quase o dobro dos US$ 55 bilhões em planos de recompras anunciados em fevereiro de 2013.
Um comportamento que mostra o óbvio: as empresas estão optando por pegar dinheiro emprestado a juros basicamente zero e recomprar suas ações. Se o retorno não vem do crescimento do próprio negócio – que sofreu com a economia americana patinando nos últimos anos -,vem a partir das recompras”.

O Fed incentivou as recompras de ações, ao manipular a taxa de juros em favor do mercado financeiro. Em 2008, dois acadêmicos respeitados no mercado, o prêmio Nobel Robert Shiller e o economista Nouriel Roubini, que já haviam previsto a crise daquele ano, avisaram sobre a alta exagerada da Bolsa Americana, com a provável formação de uma bolha de crescimento perigosa no mercado financeiro nos próximos anos. Jamie Dimon, presidente do JP Morgan, e o ex-secretário do Tesouro americano no governo Clinton Lawrence Summers, também denunciaram a imprudência do banco central ianque, apurou o site de investimentos brasileiro.

A partir de 2015, o cenário nos Estados Unidos era alarmante e visível para boa parte dos observadores mais atentos ao mercado. As “buybacks” das grandes empresas e a alta exagerada da Bolsa americana eram fatos conhecidos pelo público mais informado e por muitos economistas no mundo inteiro. Nada foi feito para deter a farra das ações, amparada pelo Fed.




                              E o Brasil nisso?


Nosso país é um espaço geográfico, social, político e econômico curioso. Enquanto os ianques acordam de seu sonho maligno, no Brasil as recompras de ações são a escolha de muitas empresas. Outra vez, o site “Infomoney” (2/4) publicou que tínhamos, ano passado, nove empresas envolvidas em recompra de suas próprias ações. Agora, em 2020, são 26. O número quase triplicou. Vejam as companhias quem adotaram a leviana estratégia na tabela abaixo:


               Fontes: CVM, Infomoney, Empresas


Enquanto o grande ‘irmão’ do Norte vende, para evitar o pior, muitas empresas brasileiras se desfazem de parte de suas reservas de capital para comprar de volta suas próprias ações. Algumas empresas de porte, já bastante fragilizadas antes de crise do coronavírus, agora voltam-se para esta prática nociva: tentar compensar seus lucros anulados pela crise no mercado financeiro. Não vai dar certo.

Com o nosso mercado de títulos derrubado pela moeda desvalorizada, pelo aumento do “spread” das agências de crédito estrangeiras e pela fuga de capitais internacionais, o que pretendem essas empresas? Lucrar com uma possível e indeterminada volta aos lucros do mercado acionário? Vender depois com lucro? Quando e como isso vai acontecer? Muitas terão dificuldades para se defenderem da crise, quando o lucro real com as vendas de produtos e serviços cair de forma dramática em 2021. O professor Roubini avisou ao diário “Expresso”, de Portugal (22/3), que a crise deste ano vai ser bem pior que a de 2008, com uma recessão global a caminho.

É sandice as empresas desfazerem-se de parte de suas reservas de capital num momento como este, de extrema volatilidade e muita incerteza. Como enfrentar a crise que virá em 2021, com menos dinheiro em caixa? Como manter os empregos dos trabalhadores? A atual administração deste país não tem preparo nem competência para planejar medidas anticíclicas consistentes que aliviem a pressão pela qual passaremos no próximo ano. John Maynard Keynes, para a atual administração, é mais um "comunista" estatizante.

O banco central americano permitiu que se plantasse em Wall Street a bomba-relógio que destruiu a capacidade de defesa das corporações americanas. A recompra de ações foi um fracasso total, mas o Fed permitiu que passasse mais de uma década, desde os avisos dos técnicos e banqueiros até a explosão do petardo em 2020. Nesse período, grandes investidores e presidentes das corporações enriqueceram, à custa do resto da economia. Hoje, o “buyback” dos ianques é coisa do passado. O de algumas grandes empresas brasileiras apenas começa. É um erro.

Que falem agora os defensores do mercado financeiro, no Brasil, se acaso puderem. A estratégia da recompra não faz sentido. Não há como justificar que empresas brasileiras comprem de volta suas ações em um momento tão grave com este, sem pôr em jogo o emprego e o bem-estar dos assalariados.