Crise do vírus reforça tendência caduca à nacionalização das manufaturas globalizadas


                                                                                             Sergio da Motta e Albuquerque


No dia 20 de abril deste ano o diário “Independent”, de Londres, publicou mais um ataque de Donald Trump ao que os republicanos mais reacionários e seus pupilos chamam de “globalismo”:

O que acontece se você está em guerra e tem uma cadeia de fornecedores onde os suprimentos pesados são entregues por você a outros países? E quais foram as pessoas que pensaram isso? Estes são globalistas. (Isso) Não funciona. Certamente não funciona durante tempos difíceis, maus tempos e tempos perigosos, disse o sr. Trump”.


Donald Trump atrelou o fracasso de sua intervenção na crise do coronavírus a seu projeto político nacionalista, no qual ele sonha, através do Banco Central americano, o “FED”, estimular à volta aos Estados Unidos das empresas que levaram suas linhas de montagens para fora do país, principalmente para a China, o inimigo eleito de Trump e sua turma. A ambição do “Donald” não tem nenhuma chance concreta no mundo real.


Em fevereiro (7) e março (22), o “Japantimes”, periódico diário japonês, revelou as ansiedades dos empresários japoneses com relação às suas redes de fornecedores de suprimentos na China. Em fevereiro, foi a vez do setor o automobilístico e autopeças. Foi publicada no jornal a fala do executivo-chefe das finanças da Subaru,Toshiaki Okada, que declarou não ser possível “fabricar automóveis no Japão sem a China”. Em março, a preocupação foram os setores de habitação e “games” digitais. No dia 10 de abril, o informativo “Vietnan Insider” publicou que o Japão gastou 2,2 bilhões de dólares para tirar companhias japonesas da China. Cerca de 240 bilhões de yens do orçamento do coronavírus estão à disposição, para ajudar na volta de linhas de montagem que imigraram para fora do país, informou o diário vietnamita.


Há um problema concreto no planeta, que foi trazido aos olhos do público quando explodiu a crise das máscaras de proteção e dos respiradores para pacientes internados, com França e Canadá a acusar os Estados Unidos de má prática comercial ao fazer compras agressivas no mercado internacional de suprimentos de material hospitalar, pagando preços acima da capacidade máxima dos outros países e tomando conta do mercado mundial com enormes somas de dinheiro, interferindo na capacidade de proteção da saúde pública doméstica de países como o Canadá. O Premier canadense Justin Trudeau pediu as autoridades de seu país que verificassem se máscaras já compradas não estariam sendo desviadas do país, publicou o Portal UOL de notícias (2/4).


A crise do coronavírus revelou a dificuldade concreta que as manufaturas sob regime de produção internacionalizada enfrentam: a perda do controle das cadeias de suprimentos envolvidas na produção de setores essenciais e estratégicos nas economias internacionais em momentos de crise.
O problema maior é como enfrentá-lo, quando já não há mais tempo para reverter uma tendência geográfica de dispersão da produção, arraigada no tempo, no espaço e nos lucros. O que fazer?


Donald Trump, e seus amigos Steve Bannon e Robert Mercer, estão com o movimento antiglobalização. Dos setores mais reacionários entre os republicanos ianques veio o termo “globalismo”, hoje bastante usado no Brasil e fora dele por gente que ainda não terminou o ensino superior. O tema é abordado com paixão cega, e para essa gente (os “antiglobalistas”), a solução é a volta ao s EUA de tudo o que foi parar em mãos e terras estrangeiras, favorecendo um nacionalismo populista de estado que é compatível com as ambições da direita nacionalista na Europa dos anos de 1930. É possível a volta à antiga integração vertical territorializada das empresas nos dias de hoje, com as firmas a controlar toda a cadeia produtiva dentro de fronteiras nacionais? Estaria em curso um nacionalismo reacionário ultradireitista, onde os estados nacionais voltariam a defender a permanência de suas conquistas tecnológicas e suas linhas de montagem dentro de seus territórios?

Há evidências empíricas dessa tendência. Elas estão ancoradas em uma realidade simples: setores estratégicos aos desenvolvimento econômico e à proteção da população devem ter suas cadeias produtivas prontas a atender as necessidades de países e populações a todo momento, haja crise ou não. Não há como fugir desta realidade. Os problemas aparecem quando surgem as propostas de superação das dificuldades trazidas pelas transferências ao exterior das capacidades internas de crescimento da economia e amparo à população em momentos de crise.


Trump quer o retorno do que foi transferido a outros países, Ele pensa ter dinheiro e poder suficiente para isso. Apoio, nem tanto. Principalmente fora do núcleo duro de seus apoiadores incondicionais, a parcela menos educada entre os republicanos ianques, além de alguns indecisos e dos pretensos “independentes” do mesmo nível. Há nos Estados Unidos e no mundo, hoje, uma iniciativa inegável favorecendo à extrema-direita, em prejuízo dos valores da democracia histórica. A América já não é mais a mesma. Nem o resto do mundo.

               Onde estão os problemas?



O informativo acadêmico “Harvard Business Review” (15/4), da renomada universidade americana, apesentou uma visão compreensiva sobre a discussão “produção autônoma local versus produção internacionalizada”. A partir de 1980, a especialização tecnológica resultou em uma concentração de saberes altamente especializados principalmente na Ásia. Hoje, China, Taiwan, Tailândia, Coréia do Sul e outros países asiáticos dominam, nos eletrônicos duráveis. Mas alemães, americanos, ingleses, suíços, suecos e italianos do Norte também fazem parte da atual rede mundial de produção, que também inclui o Brasil e muitos outros países. A brasileira PCYes, do ramo da informática, também produz da China, para o Brasil e para o mundo, assim como a nacional do mesmo ramo Multilaser, especializada em gabinetes de PC e outros acessórios de informática. E muitas outras. A hora de agir contra os interesses da China já passou. Agora, a cena só mudará com guerra.


Outro ponto importante foi exposto pelo texto de Harvard: hoje, “um fabricante não tem apenas que fornecer todos os componentes de um produto, ele tem que aumentar a escala de produção”, ensinou o periódico da universidade ianque. O processo de selecionar e juntar matéria prima, desenhar e montar o produto, escolhendo entre diversas ofertas de mão de obra e múltiplos fornecedores não é simples. Na atualidade, a capacidade autônoma local de produção em grande escala está apoiada em uma interdependência entre firmas que se espalham pelo mundo. “Numa emergência”, explicou o texto, “o aumento da escala de produção demanda habilidades específicas”. Elas não formam como no passado um panorama geográfico concentrado. Ao contrário, estão dispersas por todo o planeta.


Além disso, hoje a manufatura mundial depende de alta eficiência operacional. Suas plantas produtivas devem operar em capacidade ótima, sem mais ou menos recursos necessários para atingir uma determinada demanda de mercado. As capacidades de produção estão submetidas a rigorosos controles de capital e de gastos. A necessidade de otimização de recursos operacionais é calculada de forma matemática para que não haja excessos ou desequilíbrios na produção, com uso excessivo de equipamentos e plantas. As fábricas têm que operar sem interrupção, e sem reservas para momentos de crise. Não é mais possível operar com capacidade ociosa. Não há sobras no que é produzido, dada as proporções técnicas do controle operacional. Isso leva a gargalos produtivos em ocasiões de emergência, como a crise que vivemos agora.


A subcontratação do trabalho produtivo é outro limite. Enquanto as matrizes proprietárias locais mantém um determinado nível de ocupação, as firmas subcontratadas fazem parte de um conjunto de fornecedores que dependem de outros produtores menores na cadeia produtiva. A demanda é grande e acaba deformada pelas pressões das firmas mais poderosas, que exercem poder de mercado e destroem a coesão do grupo de firmas subcontratadas e suas ofertas de trabalho, limitando sua produção pelo excesso de poder das matrizes locais territorializadas. As corporações poderosas acabam por controlar quase toda a oferta das subcontratadas, anulando as vantagens que poderiam oferecer a outras empresas menores. O resultado final é uma curva de oferta de firmas terceirizadas pouco elástica, curta e incapaz de atender ao mercado global em momentos de emergência.


Além disso, a maldição da produção em tempo real destruiu os inventários e não permite mais a acumulação de excedentes de produção fora da escala de comercialização imediata, alertou com perspicácia o informativo de Harvard. Isso também é verdadeiro desde o final dos anos de 1980. A ambição pelos lucros rápidos não permite a existência de uma logística de fornecimentos emergenciais fora da escala prevista pelo mercado. Não gosto de apelar para argumentações morais, mas o desejo de lucro acelerado e incessante, no fim das contas, impede que o mundo e os países estejam protegidos em momentos de perigo como agora.

                                   E as soluções?



O texto de Harvard propõe quatro medidas para que as principais cadeias produtivas das empresas não caiam reféns da rede internacional de produtores e suas firmas subcontratadas espalhadas pelo mundo, nos momentos difíceis. Elas formam hoje uma rede indivisível e essencial, muito além das mesquinhas esperanças de um capitalismo nacionalista de estado dominado pela direita, como deseja Trump e seus asseclas. Vejamos o que foi proposto:

1) Voltar a estabelecer reservas, estoques e inventários de materiais e produtos essenciais onde a diversificação for impossível;
2) planejar alternativas para gargalos de produção e logística;
3) repensar estratégias de fornecimento para todos os produtos estratégicos;
4) reconsiderar estratégias de planejamento para bens de consumo essenciais em momentos de crise, como suprimentos médicos;
(Harvard Business Review)


Há necessidade de voltarmos um pouco no tempo e limitarmos as demandas da globalização. Isso não significa liquidá-la em favor de um capitalismo nacionalista dominado pelos interesses da extrema direita. Por outro lado, precisamos reconhecer que a produção em tempo real, sem qualquer consideração a estoques ou inventários, é um perigo estratégico real e imediato. Alguma reserva de produtos essenciais estratégicos deve ser mantida em inventários nacionais, suprida pelas capacidades locais de produção, ou através de trocas internacionais de excedentes planejados para enfrentamentos de emergências. Ou ainda, no melhor dos casos, por estas duas estratégias combinadas, em nível local e a internacional, para atender as populações em perigo em todo o mundo.


Com inteligência, planejamento e colaboração internacional estaremos preparados, dentro dos limites do acaso e pela imprevisibilidade das crises que por certo enfrentaremos no futuro. Não há sofrimento ou angústia que justifiquem apelação à cegueira ideológica de nenhum tipo de nacionalismo populista da direita moderna retrógrada.