Características únicas da Embraer podem garantir sua sobrevivência no mundo pós-vírus



Os desafios da sobrevivência de empresa e do povo 
brasileiro durante e depois da supercrise

Sergio da Motta e Albuquerque

A história da Embraer confunde-se com a história da industrialização moderna brasileira, um processo iniciado com Getúlio Vargas, e que se expandiu adiante ao futuro, atravessando a ditadura militar e os frágeis regimes republicanos que a seguiram, até alcançar a glória maior de uma empresa sofisticada localizada em um país emergente na era da globalização, e que chega agora aos ameaçadores dias do coronavírus, na maior segunda maior crise do capitalismo na história moderna. O conglomerado brasileiro nasceu e cresceu com seu povo e suas esperanças, desafiando a descrença mundial em nossa industrialização de base tecnológica e na nossa engenharia aeronáutica.


Sua cronologia compõe uma narrativa emocionante e de dimensões épicas, onde todo o esforço e as melhores capacidades de um povo foram postos em sinergia em busca de resultados produtivos para o país e a nação brasileira: trabalhadores, formais e informais, desempregados, estudantes, dependentes, artistas, empresários, financistas, construtores de edificações e mundos tecnológicos. Todos nós, sem exceção. Ela é um emblema da honra nacional. Um golpe rude em quem nunca acreditou que os brasileiros um dia ousariam construir mercados no céu, e conquistariam o sofisticado mundo da engenharia dos jatos modernos. A Embraer é o maior sucesso da indústria brasileira e uma marca internacional de qualidade. Ela é um símbolo da força da nossa união. Estará conosco e vai nos consolar no futuro, superando a pequenez da política, da tradição patriarcalista brasileira e de seu mundo de negócios primitivo, limitado por horizontes estreitos.

Por que estou a declarar isso tudo? Porque a Embraer, hoje ameaçada, como muitas outras do setor aeronáutico neste planeta, é única em algumas especialidades, e vai sobreviver ao ensaio fracassado de uma dissolução lucrativa e quiçá promissória através de uma fusão com a Boeing. O futuro é sempre diferente daquilo que prevíamos, com ou sem o auxílio da ciência. O imprevisto, o acaso e sede de lucros predatórios, na maioria das vezes, condenam a atividade econômica à sucessivas crises de extrema volatilidade, que abalam não só o desempenho, mas a própria sobrevivência das corporações. O vírus chegou, o acordo salvador com Boeing não vingou, e hoje muita gente aponta para a necessidade da venda da Embraer como necessidade imperiosa. Não é.

A Boeing vinha mal, mesmo antes da crise do coronavírus. Agora dependente de ajuda do governo Trump, apenas para manter-se no negócio. Para continuar a existir como fabricante de aeronaves de grande relevância em todo o mundo. Ela não pode pagar 4,2 bilhões de dólares neste momento, por isso acusou a Embraer de fracassar em cumprir sua parte no acordo. São os arroubos de orgulho de uma gigante ameaçada por seus pés de barro, que agora chafurdam na lama da insolvência trazida pela recompra irresponsável de suas próprias ações.


A corporação ianque agora ameaça sucumbir. A nossa Embraer voltou. Na hora mais negra para a economia nacional e mundial da história recente, exceção feita à grande depressão que se seguiu ao “crash” de Wall Street em 1929. A aviação comercial, filão mais lucrativo da empresa, retornou ao controle brasileiro. Sua ida aos Estados Unidos foi apenas uma hipótese. O governo, em nome do povo, ainda detém o controle da empresa, através da “golden share”, a garantia de controle governamental sobre uma propriedade de todo o povo brasileiro. O controle acionário da empresa é complexo e pulverizado, com participação relevante do capital financeiro internacional, mas a corporação é nacional não apenas porque o governo brasileiro tem o controle final sobre seu destino, com a cláusula da “golden share. Trata-se de uma corporação brasileira, graças a localização espacial da maior parte de seu patrimônio histórico, como seus centros mais importantes de pesquisa, do aeroporto, das empresas subsidiárias e de grande parte de sua força de trabalho. Por fim, onde quer que a Embraer vá ou esteja, a cultura da empresa é brasileira até o âmago, e ela é apreciada no mundo por isso.

A Embraer tem especialidades únicas que poderão levá-la de volta às épocas melhores. O mundo vai superar esta pandemia e voltar a seu eixo convencional, de compras e vendas. A produção (de tudo) vai voltar, assim como a distribuição e o consumo dos bens e serviços que circulam através do globo. A aviação comercial, regional e internacional, voltará a florescer. Mesmo que ainda não saibamos muito bem em que termos.


A primeira dessas características singulares que podem salvá-la é a flexibilidade da estrutura de produção. Na aviação comercial, as parcerias internacionais tornaram a produção horizontalmente integrada mais adequada, com os fornecedores estrangeiros a participar do projeto desde suas etapas iniciais, até a montagem da aeronave pronta. Vanessa de Lima Ferreira, Mario Sergio Salerno e Paulo Tadeu de Mello Lourenção, em seu artigo “As estratégias na relação com fornecedores: o caso Embraer”, apresentaram um estudo de caso sobre o relacionamento da corporação com seus fornecedores, onde os autores estudaram os processos de organização da produção da Embraer comercial, executiva e militar (Gestão e Produção, 2011, pg.229). A Embraer Militar ficará de fora deste comentário. O exemplo da fabricante militar brasileira de aeronaves, do ponto de vista de sua organização de produção, é pouco relevante para a discussão da capacidade competitiva da empresa no mercado da aviação comercial civil.

Na aviação comercial, em seu início, o constrangimento financeiro determinou as parcerias internacionalizadas. Depois, com a diversificação da empresa, surgiu a aviação executiva, e, para este setor houve a necessidade do acesso mais rápido ao mercado. A Embraer então adotou uma integração mais vertical da produção, com a companhia dominando todas as etapas, do projeto ao produto final, e produzindo ela mesma alguns subsistemas importantes, quando a terceirização se revelava mais cara. Foi o caso do “Phenom”, e depois do “Pretor.” A Embraer adapta sua estrutura de produção aos meios e métodos mais eficientes para abastecer seu mercado com seus produtos.

A segunda é sua capacidade de tirar proveito das parcerias estratégicas sem comprometer a qualidade do produto final. Neste tipo de cooperação, a Embraer trabalha como montadora e integradora de partes e peças que vêm de todo o mundo. Ela não produz a maioria dos componentes da aeronave, mas recebe de fora subsistemas prontos, como (apenas como exemplos genéricos), conjuntos de caudas, com seus estabilizadores verticais e horizontais, ou os sofisticados eletrônicos de bordo, que devem ser integrados pela fabricante brasileira aos elementos aqui produzidos, como trens de aterrizagem e fuselagens, na montagem final das aeronaves. A Embraer é a melhor integradora do mundo, exercendo exemplar controle de qualidade em um ponto crucial da produção: a montagem destes componentes, nacionais e estrangeiros, em um conjunto total harmônico, com a produção final das aeronaves a manter uma concepção aeronáutica segura, confiável e econômica.

A terceira é o seu potencial de luta para manter-se  solvente em maior grau que suas concorrentes, pesadamente subsidiados, como os americanos da Boeing e os europeus da Airbus. O jornalista Roberto Godoy, no incio de Maio deste ano (1), informou ao jornal ‘Estado de São Paulo’, que a Embraer “tem bastante dinheiro em caixa para passar dois anos sem vender nada”. Não é o caso da Boeing, agora. Muito menos o da Bombardier, hoje expulsa da competição internacional.

A Embraer nasceu estatal, em 1969. Começou a conquistar o mercado norte-americano, o mais rico e relevante do planeta, nos anos de 1980, através da ação decisiva de Gary Spulak, o mais importante executivo da empresa desde seu fundador, o dedicado e obsessivo Osíres Silva. Spulak, 65 anos, abriu as portas do mercado ianque para o Bandeirantes e, sobretudo para o futuro sucesso do “Brasília”, uma aeronave turboélice robusta, econômica e vencedora entre as companhias americanas e muito popular entre os pilotos na aviação regional nos Estados Unidos. A empresa vivia grandes dificuldades, naquela época. Mas perseverou debaixo da crise.

O empresário ianque trabalhou para o sucesso dos primeiros jatos da empresa. A empresa aprendeu a empregar com prudência as parcerias com os fornecedores internacionais, sem prejuízo da qualidade do produto final, como aconteceu com a Boeing. Conseguiu manter a solvência depois da privatização em 1994, em colaboração com os engenheiros e firmas comprometidas com inovação, e não apenas com financistas gananciosos e de horizontes curtos. Eles não tem espaço em um setor que exige visões voltadas aos desafios do futuro. Depois disso, e Embraer apostou e ganhou na diversificação, com a sua linha de aviação executiva e seus jatos de alta tecnologia e criatividade. A Embraer é uma empresa de agora. É jovem e forte. Vai resistir aos novos concorrentes chineses, japoneses e russos, e sobreviver à excelência técnica da Airbus e seu novo “bebê” da aviação regional, o “C-Series” canadense, uma aeronave de alta qualidade e agora rebatizada A-220.

A aeronave européia tem um alcance maior que seu principal concorrente da Embraer, o E2-195. Que não pode cruzar o Atlântico em vôo ponto a ponto, mas é mais especializado na aviação regional dedicada às menores distâncias. É mais barato, também, e mais confortável, em algumas configurações menos densas. No E2195 (e seu irmão menor, o E2190), uma configuração mais exclusiva e de menor densidade de passageiros (118). Estes viajam como se não tivessem ninguém ao seu lado. Há uma janela na direção exata de cada viajante. Observem:



O A-220 tem assentos mais confortáveis, mas seu desenho é rígido. Ele inclui a detestável fileira com o “terceiro lugar”: o “lugar do meio”, apertado entre a janela e o o corredor. É desagradável viajar ali e público sabe disso. Vejam à direita na figura:





A Embraer pode bater a Airbus e o A-220, mesmo na Europa, em um cenário de competição perfeita, produto contra produto, se de algum modo fosse possível contornar as forças protecionistas da União Européia. Um exemplo do que falo é a frota de 50 aeronaves da Lufthansa CityLine, dividida entre os aviões da Embraer, Bombardier e a Airbus. A  italiana Air Dolomiti opera apenas com 15 Embraer E195, com um total planejado de 23 jatos deste modelo e sua atualização, o E2 195, até 2023. É uma pequena companhia regional, com uma pequena frota, mas toda ela fabricada pela Embraer. A empresa brasileira permanece competitiva na Europa, porque oferece mais por menos: custo de aquisição e manteação menores, para a mesma demanda de passageiros.

É hora de acreditar no futuro próximo na Embraer. O 737 Max não vai voltar, e milhares de rotas curtas logo estarão disponíveis, abrindo espaço para a brasileira, e a Airbus, com o A-220. A Boeing tende agora a uma quase inevitável nacionalização, por ter dissolvido sua capacidade de resistir às crises ao comprar suas próprias ações, garantindo lucros no mercado financeiro em prejuízo de suas linhas de montagens, abaladas por controles de qualidade questionáveis. Como nos casos dos problemas com o 787 “Dreamliner”, um quase pesadelo voador que abalou o prestígio do colosso aeronáutico do norte, desde os incêndios em suas baterias de lítio em 2015, e depois com o escândalo do 737 Max 8, um projeto antigo, atualizado com falhas irrecuperáveis. A aeronave é, por concepção original, instável e depende de sensores ligados a programas de computador para manter sua estabilidade em vôo. O 737 Max é uma ameça de morte a quem quer voar nele.


Tomemos, a título de comprovação do que disse, um exemplo em contraste: uma aeronave militar de ataque ao solo, como o F-117 americano, por exemplo. É uma aeronave de combate, tripulada por dois aviadores, concebida para voar sob controle de computadores e seus programas. Ela é, por definição de projeto, instável, é despencará dos céus sem eles. Ela pode depender de sistemas computadorizados para manter segurança de vôo em suas missões. Uma aeronave civil de passageiros, nunca. É o fim, para o 737 Max da série 8.


A Embraer encontra-se diante de um desafio colossal, espelhado na dúvida e na ansiedade de muitos, especialistas em aviação ou não: ela pode sobreviver só, agora e depois da crise que abalou o segmento de produção de aeronaves comerciais em todo mundo, ou dependerá de uma associação com uma grande empresa estrangeira para enfrentar a competição, aquecida agora pela entrada do Japão, da China e da Rússia? É provável que sobreviva, ao menos por um tempo. Rússia e China ainda não comprovaram a segurança de seus produtos da aviação comercial ao mercado internacional. A Embraer já superou esta fase há muito tempos: é uma marca consagrada por sua segurança e cofiabilidade em todo o mundo. O Japão, com suas especializações tecnológicas em alto nível, é uma ameça real e perigosa, para a aviação comercial da Embraer. Uma associação com a poderosa e confiável Mitsubishi, embora desejável, é quase impossível. Não parece interessar ao Japão.


A corporação brasileira, neste momento, precisa mais do que um empurrão financeiro. A nossa empresa precisa não apenas de ajuda do governo e dos bancos para não “quebrar”, assim como seu povo. Ela precisa de mais. Seu papel estratégico na economia nacional precisa ser devidamente recuperado, e financiado de acordo com sua relevância para este país. No dia 4 de Abril deste ano foi anunciado um possível retorno do investimento estatal à Embraer, com um aporte do BNDES de 1 bilhão de dólares prometido à empresa, “em ações e diluição dos atuais sócios”. O ilusório compromisso da atual administração com uma futura venda a uma terceira grande corporação foi mantido. É uma hipótese obtusa e intempestiva: não há compradores neste momento, informou o presidente do Clube de Engenharia, Paulo Celestino, ao jornal “Valor Econômico”. Todo o mercado sofreu uma redução de 90%.


Sobre a ajuda governamental não só à Embraer, mas a todas as grandes, pequenas ou médias empresas, há algo mais a ser dito, que vai muito além dos problemas das empresas em geral, no Brasil e no mundo. Trata-se da necessidade imediata da recuperação da capacidade de consumo da população em todo o mundo, que tem grande impacto na arrecadação dos tributos e na recuperação das economias como um todo.


Nenhum socorro às empresas, nenhum perdão de débitos ou renúncias fiscais, por maiores que sejam, neste momento, produzirão os efeitos desejados, a menos que também sejam perdoadas, na mesma proporção, as dívidas financeiras e tributárias da população. Se houve, como de fato há, injeção em setores estratégicos e no sistema financeiro, deve acontecer o mesmo para as famílias e para o consumidor em geral. Sem uma reorganização global das dívidas, onde os débitos em mãos de credores do sistema financeiro e tributário sejam ajustados a capacidade de pagamento real da população, todos os sistemas de compensações financeiras, nacionais e internacionais, públicos e privados, implodirão. O perdão total, ou em maior parte, das dívidas em cartões de crédito, empréstimos bancários e tributos locais e federais em atraso (ou mesmo em dia, a depender da evolução da situação atual), são realidades a serem consideradas em sério, neste momento. Ou não haverá um amanhã, nem para a Embraer ou qualquer outra empresa no mundo pós-coronavírus. Não vai haver poder aquisitivo suficiente para consumo além da subsistência, e as economias entrarão em colapso. Todas elas, pelo mundo afora, como após o choque da Bolsa de Nova Iorque em 1929.


O 'pequeno' colosso da aeronáutica brasileira precisa de ajuda, e nós também. Ele precisa ficar no Brasil, e não ser entregue a uma grande corporação internacional. Elas não estão em absoluto acima da crise que agora assola o mundo. O mais irônico (e trágico) é que a Embraer poderia, em tese, ter adquirido agora, uma oportunidade única: recuperar-se através do investimento nacional. Seria o melhor para o país, mesmo neste momento adverso para o setor da produção de aeronaves. Mas o governo inepto e fracassado deste país não está  interessado em investir em firmas brasileiras pioneiras em inovação, e que conseguiram se manter de pé, e com muito sucesso depois da privatização em 1994. Vender a Embraer, ou seu segmento comercial, o mais lucrativo , é quase um ato de traição. Entregá-la à maior oferta de algum grande grupo internacional é sinal de covardia e falta de  visão para um futuro melhor para o Brasil.


A Embraer nasceu e foi criada aqui, como nós todos. É nossa irmã de jornada nesta terra. De uma forma ou de outra, será nossa para sempre, e viverá para provar através do tempo o valor da nossa gente não só às futuras gerações de brasileiros e brasileiras, mas a todo mundo.