O maconheiro

 Sergio da Motta e Albuquerque






Foi em 1961 que esta história aconteceu. Era domingo, e eu havia saído com minha mãe. Fomos a uma casa de uma amiga dela, na principal avenida do bairro do Lins de Vasconcelos, em que morávamos naquela época. Lembro da escada íngreme, e da varanda lateral da grande residência. Havia um clima de agitação na rua e entre as colegas de minha mãe. Algo mau havia acontecido.

Uma das mulheres comentou sobre o corpo de um homem, morto, encontrado na rua nas primeiras horas da manhã:

-Era um maconheiro. Acabou na vida do crime”, acusou a colega de minha mãe Não era a primeira vez que eu ouvia falar daquela droga. Mas eu pouco ou nada sabia sobre ela. Resolvi investigar o caso por conta própria, já que minha mãe parecia se divertir bastante ali com aquelas amigas.

Desci as escadas e caminhei uns cem metros até a cena do crime. Não havia muita gente ali. Lembro que a polícia técnica – a “perícia”, como a conhecemos no Brasil, estava lá. Os detetives usavam ternos e chapéus. Um deles, que parecia ser o mais experiente, rodeava o cadáver, atento. Abaixou-se, olhou bem para o infeliz ali abatido, e depois ditou para seu colega, que trazia um pequeno caderno com ele, além de uma máquina fotográfica:

Nome: Roberto de Tal. Cor: parda. Idade: não conhecida. Jovem, sexo masculino.”

Não lembro da causa mortis. Os detetives, bem diferentes daqueles que conhecemos hoje, nada disseram, ou já haviam passado por aquela fase do relatório que faziam – e que eu havia testemunhado, em parte. Em pouco tempo, chegou a viatura para levar o corpo, e tudo terminou para aquela vizinhança. O domingo continuaria. À noite, na Missa das seis horas, ninguém lembraria dele. Eu não lembrei. Mas nunca o esqueci.

Eu tinha seis anos de idade, e ainda não era impressionável e sensível àquele tipo de acontecimento. Aquele foi o meu primeiro testemunho da legendária violência da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Hoje, eu vejo uma outra metrópole ao meu redor. Percebo que cresci numa sociedade mais pobre, menos venal e mais cordial que a que hoje enfrentamos. Hoje a vida social, não só no Brasil mas em quase todos os países ditos civilizados, a vida em sociedade é uma cabala bruta de choques e confrontos diários. O mundo ficou complicado demais, e as pessoas andam a procurar mais e mais motivos para perpetuarem esta áspera existência de divisões, preconceitos, crimes, guerras e política suja. Tudo isso bem embrulhado em muita, muita indiferença.

Aquele homem, morto na rua, naquele domingo, hoje é parte de um mundo que se foi, rápido e funesto como fogo fátuo. Como engenho e lida de gente que se foi para sempre.

Ele, ali no chão, consumado, não tinha apelido ou nome de família. Era só um “fulano de tal”, à margem de uma sociedade conservadora e paroquial, que, naquele domingo, parecia viver a paz que afirmam existir antes das grandes tempestades. Havia um clima tempestuoso de mudanças inesperadas e nada bem-vindas no ar.

Três anos depois, os militares tomariam o poder.

Nada mais seria como antes. No Brasil e no mundo.