A Vizinha

Sergio da Motta e Albuquerque



A pandemia que envolveu o planeta aumentou em muito as entregas de bens e objetos de todos os tipos, comprados na web, e fora dela. Uma dessas remessas da internet foi recebida pelo porteiro de meu prédio com muito bem humor. E algo mais.

O entregador, ofegante, perguntou ao jovem administrador do entra-e-sai das compras, mercadorias e carregadores:

“- Entrega para a moça do 904. Posso deixar os pacotes aqui? Não quero subir ao nono andar”.

O porteiro respondeu com uma réplica intrigante:

“- O senhor pode subir. Suba, por favor. Não vai se arrepender”, argumentou ele.

O mensageiro parecia confuso. O porteiro teimou:

“-Suba. Vai ser interessante. Ao mínimo”, disse ele, bem-humorado.

O homem entrou no elevador e subiu, a pensar sabe-se lá o quê.


De imediato, arguí o funcionário;

“-Do que se trata? O que há de tão bom naquele andar?”

“-O senhor sabe”, respondeu ele, “a moça que mora lá…”

“-Quem?”, perguntei, sem conseguir disfarçar a comoção interior.

Ele prosseguiu:

“-Aquela moreninha alta, do 904”.

“-Minha vizinha?”perguntei, desorientado.

“Não”, ele respondeu, intrigado:

“-O senhor mora no oitavo andar”, confirmou ele o óbvio, já esquecido naquele momento, por mim.


O inspetor da entrada continuou, animado pela minha imensa curiosidade:

“-Ela atenda à porta em trajes mínimos. Enrolada em tolhas e coisas assim. Ou menos! Ainda ontem, ela vestia um shortinho que dava pra ver o meio das…’’

“-Chega!”, disse eu, rindo e, ao mesmo tempo, interrompendo sua descrição detalhada daquele determinado momento.

Persisti em minha arguição rigorosa:

“-Ela vem assim mesmo? Para todos”, perguntei. A verdade é que eu já não recordava desta vizinha em especial. Mas sentia uma necessidade imperiosa de lembrar quem era aquela mulher.

O funcionário continuou:

“- A menina vivia com uma outra moça. Parece que brigaram, e a outra partiu”, informou ele.



Foi então que lembrei: a misteriosa moça era a filha de um senhor que eu havia conhecido alguns meses antes. Ela fazia muito barulho com uma máquina de lixar madeira, no corredor do prédio, naquela tarde. Saí de casa, cruzei os braços e esperei, até que ele me visse:

“Estou incomodando?”, perguntou.

“Está sim senhor”, respondi.

“Paro imediatamente”, ele disse.

Aquela atitude me desarmou.



Notei de imediato que havia sido áspero demais com um desconhecido;

“-Posso ver o que o senhor faz?”, perguntei. Ele disse:

“-Por favor. Venha”, convidou.



Depois de algum tempo de prosa, percebi que ele era o pai de uma moça que acabara de mudar para o meu prédio. Um homem afável, que estava ali a ajudar a filha. Não para julgá-la.

Acabamos amigos. Ele confessou a mim:

“-Ela mora com uma amiga”, disse o homem.

Era mais novo que eu, recordo hoje.

“-Eu entendo”, respondi.



Passaram alguns meses, a infernal pandemia não foi embora, e eu continuo com a história sobre a vizinha em minha imaginação.

“-Um dia ainda bato naquela porta”, digo a mim mesmo. A ideia, entretanto, é estimulante assim como está: narcisista, distante e platônica. Não há nada mais a ser feito, além de lembrar com bom humor a história da vizinha.

Qualquer coisa, além disso seria um desastre.